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quinta-feira, junho 02, 2005

Devia morrer-se de outra maneira.

Devia morrer-se de outra maneira.
Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.
Ou em nuvens.
Quando nos sentíssemos cansados,
fartos do mesmo sol a fingir de novo todas as manhãs,
convocaríamos os amigos mais íntimos com um cartão de convite
para o ritual do Grande Desfazer:
"Fulano de tal comunica a V. Exa. que vai transformar-se em nuvem.
hoje.
às 9 horas.
Traje de passeio".
E então,
solenemente,
com passos de reter tempo,
fatos escuros,
olhos de lua de cerimônia,
viríamos todos assistir à despedida.
Apertos de mãos quentes.
Ternura de calafrio.
"Adeus! Adeus!"
E,
pouco a pouco,
devagarinho,
sem sofrimento,
numa lassidão de arrancar raízes...
(primeiro, os olhos... em seguida, os lábios... depois os cabelos... )
a carne,
em vez de apodrecer,
começaria a transfigurar-seem fumo...
tão leve...
tão sutil...
tão pòlen...
como aquela nuvem além
(vêem?) —
nesta tarde de outono ainda tocada por um vento de lábios azuis...
José Gomes Ferreira

1 comentário:

Yakunna disse...

assim, sim, valia a pena morrer!